quinta-feira, fevereiro 19, 2009

Sobre o 'casamento homossexual'

Parece que o chamado Casamento de Pessoas do Mesmo Sexo já está no adro, tendo curiosamente chegado ao colo da crise. Há apenas 4 meses atrás o nosso Primeiro ainda considerava necessário um âmplo debate no seio da sociedade, mas agora que a crise arrumou com a direita, o PS só tem de se bater à esquerda e decidiu fazê-lo com medidas de nulo impacto orçamental mas que levam a esquerda dita moderna a embandeirar em arco.

Ora bem, que argumentos há a favor do casamento de pessoas do mesmo sexo? Eu vejo apenas um. Trata-se de regular e reconhecer certos direitos aos elementos de uma união de duas pessoas que vivem numa relação estável e prolongada, e por isso digna de protecção, e que calham ser do mesmo sexo.

Há no entanto uma série de outros argumentos erradamente invocados para defender o casamento de pessoas do mesmo sexo. A sua constante repetição não os torna mais verdadeiros, mas inquina o debate, tornando-o sufocante sem necessidade. São eles os que se seguem.

i) Da liberdade: Segundo este argumento não se pode impedir o casamento de duas pessoas do mesmo sexo porque tal iria limitar a liberdade desses dois cidadãos. Acontece que, como é do conhecimento geral, numa sociedade de direito como a nossa, ninguém tem a liberdade total - aquela possibilidade de fazermos tudo o que nos dá na real gana. É muitas vezes afirmado que, se é verdade que a nossa liberdade é coartada pela Lei, é-o apenas quando colide com a liberdade dos outros. Daí que, sendo o casamento um assunto apenas entre aqueles dois indivíduos, e que assim não vai afectar a liberdade dos outros, não há razão para ser impedido.

Claro que isto não é verdade. Alguns exemplos desgarrados: eu estou proibido de pisar o risco contínuo ou cometer qualquer outra infracção do código da estrada mesmo quando não há nenhum outro veículo ou peão na estrada que possa ser afectado pela minha condução. Mais. É crime profanar um cadáver humano, mesmo se este não tiver parentes ou conhecidos que por ele sintam afecto. Apesar de ser óbvio que esse cadáver não tem nem personalidade jurídica, nem alguém próximo que se interesse, e por isso tem a mesma dignidade que as ossadas de um homem da idade do bronze num qualquer sítio arqueológico. Finalmente, recordo que se o projecto lei do PS (ou o do Bloco, ou o do PC) andar para a frente, ainda assim dois irmãos adultos do mesmo sexo continuarão a não ter a liberdade de poder casar-se um com o outro.

ii) Da discriminação: É argumentado que não se pode impedir o casamento de pessoas do mesmo sexo, porque a Constituição impede a discriminação de cidadãos por motivo das suas orientações sexuais. Este erro é grave porque presume que o casamento entre duas pessoas do mesmo sexo só possa ser realizado se essas duas pessoas forem homossexuais. Só que isso sim configuraria uma discriminação que teria por base a orientacao sexual. (Será que vai ser exigida a "consumação do acto"?) E é errado porque o casamento sempre foi considerado uma união de pessoas de sexos diferentes, mesmo na Grécia antiga...

De facto, custa-me a perceber que duas pessoas do mesmo sexo que vivam juntas tenham de ser homossexuais para se poder casar e assim poder gozar da protecção legal da sua união, nomeadamente em termos sucessórios e fiscais. Há muitos casos de amigos, amigas ou parentes que vivem juntos durante toda uma vida, durante a qual adquirem património juntos e cuja relação estável de entreajuda e amizade merece tanto apoio do Estado como a relação entre dois homossexuais. Outra coisa seria descriminação com base na orientação sexual e por isso inconstitucional.

O casamento civil é um sucedâneo do casamento religioso, que o antecedeu de muitos séculos e como tal é natural que, seguindo o original, tenha sido sempre uma união entre duas pessoas de sexos opostos. Há quem ache que não se poder andar de carroça na auto-estrada é discriminação e há quem pense que uma pessoa não poder casar com outra do mesmo sexo também o é. Nem uma coisa nem outra fazem sentido. As auto-estradas foram feitas a pensar nos automóveis (talvez daí o auto) e o casamento para pessoas de sexos opostos. Pode ser que um dia o legislador queira incluir mais uma via na auto-estrada, que será não só para carroças mas também para cavalos, bicicletas e trotinetes. E pode ser que o mesmo legislador queira acrescentar mais uma via no casamento, que permitirá a duas pessoas do mesmo sexo, homossexuais ou não, casar-se. Não se trata de acabar com uma discriminação, trata-se sim de criar uma nova possibilidade.

iii) Da justiça histórica: Segundo este argumento, o casamento de duas pessoas do mesmo sexo é o culminar de um processo histórico, sendo uma decisão de reparação à comunidade gay e lésbica, que foi perseguida ao longo de séculos e até muito recentemente. Este argumento foi usado há dias num debate televisivo e é um perfeito disparate. Não só a urgência, entre os homossexuais, de poderem casar-se entre sí é um fenómeno bastante recente, que surgiu de forma natural na sequência da conquista de outros direitos, como nunca pode servir de justificação automática para a conquista de novos direitos um passado de perseguição. (Veja-se por exemplo, como os Israelitas são useiros e vezeiros em usar este tipo de argumentação para justificar um estatuto excepcional na cena internacional). Também as Testemunhas de Jeová, os Ciganos, os Mulçumanos, foram perseguidos e como sabemos elementos de todos estes grupos defendem regimes de excepção que colidem com a Lei Portuguesa, como seja a poligamia.

Assim sendo, espero que o casamento de pessoas do mesmo sexo seja aberto a quaisquer pessoas, inclusive parentes, e não apenas a homossexuais. Ao que sei, uma relação estável e de amor nem sempre envolve sexo. E relações ditas incestuosas consentidas entre adultos podem parecer-nos estranhas mas existem e dizem-nos tanto respeito como aquelas entre heterossexuais ou homossexuais.

Parece-me que chamar casamento a estas uniões é um pequeno abuso de linguagem, que no entanto é irrelevante numa sociedade de pessoas inteligentes que conseguem perceber o que se esconde para lá das designações.

Finalmente continuo à espera de ver tanto ou maior empenho deste governo do PS na protecção e apoio às famílias com filhos menores. Estamos a falar de um universo exponencialmente superior ao dos homossexuais que se querem casar (basta projectar para o caso Português os cerca de 5000 casamentos de pessoas do mesmo sexo realizados durante 3 anos em Espanha, para se perceber do que estou a falar), e por isso de medidas de grande relevância e impacto no futuro do País.

8 comentários:

  1. Anónimo07:56

    Se acha que um casal que não pode fazer com a sua vida, de modo a que não interfira com a de mais ninguém, o que quer (e com isto quero dizer casar-se) é livre, então creio que terá que rever esse conceito. E quanto ao falacioso argumento "a liberdade acaba quando começa a do outro" só lhe respondo que a liberdade de todos começa e acaba no mesmo sítio, uma vez que no actual regime político português somos todos iguais. Quanto à discriminação: quando a um tipo de cidadãos é concedido um direito que não é concedido a outro a isso chama-se... exacto! discriminação.
    Quanto ao factor iii) concordo em parte consigo.

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  2. Caro Anónimo, com todo o repeito, percebeu mal: Eu não escreví que quem não pode fazer da sua vida o que quer "é livre". Ninguém é livre. A nossa liberdade é limitada pelo Estado, pela Sociedade, pela Natureza, pela carteira, pelos nossos próprios limites. O que afirmei é que a falta de determinada liberdade não é nunca argumento para passar a haver essa liberdade.

    Perante o actual regime juridico português somos todos iguais? Não é bem assim. É o próprio regime jurídico que define quem é igual a quem e em que circunstâncias. Um jovem de 18 anos é diferente de um jovem de 17, mas igual a um de 35 no que toca à possibilidade de votar. Mas os dois primeiros são diferentes do terceiro, porque ainda não podem ser eleitos Presidente. Um Português é diferente de um Angolano e eu, neste momento, se quisesse ser Angolano não podia. Etc, etc, etc...

    Da mesma forma, a partir de certa idade todos podemos casar com alguém do sexo oposto. Somos iguais, temos o mesmo direito. Ninguém pode casar com pessoas do mesmo sexo. Somos iguais, temos o mesmo impedimento. É por isso que não há discriminação.

    Não posso concordar que para se estabelecer o casamento de pessoas do mesmo sexo seja necessário dramatizar, alardear a superioridade da comunidade homossexual e acusar quem quer que discorde desse casamento de homofobia.

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  3. Comentário da hora de almoço: legalize-se a poligamia.

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  4. A poligamia tem de ser primeiro legalizada na Holanda, Bélgica, depois em Espanha. Nessa altura tornar-se-á então imperioso acompanhar os ventos de mudança que nos chegam da Europa através do caderno do El Pais :)

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  5. Comentário muito depois da hora de jantar:
    Obrigado Filipe. Belo texto. Não há dúvida que este é o assunto prioritário do momento. Nada melhor que um tema 'fracturante' para desviar as atenções da mediocridade dos nossos governantes. Parece-me mais importante, por exemplo, discutir se o direito ao divórcio simplex (civil, união de facto ou outro formal ou não) protege ou não os filhos eventualmente gerados na vigência desse 'contracto'.
    Eu, como cada vez mais fervoroso ateu, dizem-me muito pouco as regras e a cultura católica - apesar disso sou uma "boa pessoa". No entanto, tem de haver regras sociais sensatas, claras e justas. Obviamente que poligamia legalizada não faz sentido.
    Relativamente ao 'casamento' gay, gostava de saber quais serão as consequências legais e os custos para o estado. Gostava de saber se existe algum tipo de discriminação positiva relativamente, por exemplo, às famílias numerosas. De resto, até se podem casar na praia de Algés com camisa cor-de-rosa e botas da tropa; estou-me marimbando!

    P.S: e já não falta muito para (re)começar a discussão da adopção e das "barrigas" de aluguer...

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  6. Declaração de interesses: não me considero de esquerda.

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  7. Tenho lido os vossos comentários com interesse. O casamento de pessoas do mesmo sexo, não homossexuais, nunca me tinha passado pela cabeça. Ainda por cima existindo casamentos heterossexuais de conveniência, como a obtenção de permissões de residência por parte de imigrantes, etc.

    Por outro lado o "regular e reconhecer certos direitos aos elementos de uma união de duas pessoas que vivem numa relação estável e prolongada, e por isso digna de protecção, e que calham ser do mesmo sexo" parece-me um argumento bastante forte. Não é suficiente?

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  8. A mim parece-me que esse argumento (que a Claudia cita) é suficiente. E engloba muitas situações para além daquelas entre homossexuais, inclusive a de familiares que vivem juntos toda a vida (não estou a falar de relações incestuosas) e que também deviam ser protegidos em questões sucessórias e fiscais.

    Para o Estado só há um caso em que a componente sexual do amor pode ser relevante, que é o caso em que pode levar à procriação. Fora este caso, o tipo de relação, haver sexo ou não, são questões irrelevantes.

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